terça-feira, 13 de julho de 2010

A criação de personagens em Enfermagem

A criação de personagens em Enfermagem surge em 1992, na Escola de Enfermagem Calouste Gulbenkian, quando fui convidado pela Enf. Arlete Canhoto Abreu para leccionar a disciplina de opção Criatividade e Espontaneidade. Eram nove horas lectivas, bem contadas: nas primeiras três eu aparecia com o personagem Prof. Pardal (ver Jerónimo Pardal, Prof, 68 anos de idade), começávamos o processo de incorporação, que era feito ainda através de cartas de jogar, havendo uma correspondência entre cada naipe com um determinado conjunto de significados (ex: espadas:morte, guerra, tristeza; copas: amor, vida, alegria e dentro de cada naipe, cada valor corresponderia a um determinado personagem. O Rei de Copas seria um Rudolfo Valentino, o dois de copas um azarado ao amor, e por aí em diante), na segunda vez vinha trabalhar com eles o desenvolvimento do personagem e na terceira vinha eu para um exercício no espaço exterior.


Esta ideia de trazer a criação de personagem para o espaço exterior tinha um objectivo determinado: levar a comunidade escolar a partilhar um pouco das actividades expressivas feitas em sala de aula. Era um objectivo muito importante naquele contexto. No corpo teórico da formação de enfermagem o trabalho sobre a animação sócio cultural e a expressão que se faziam nesta disciplina, ou na de movimento e drama (Prof. Rui Pisco) e nas terapias expressivas (dadas pela enf. Arlete Abreu) era muitas vezes encarado como uma bizantinice que resultava da persistência e da teimosia da Arlete mas que estaria, para muitos, completamente fora das necessidades da formação específica em Enfermagem. Acrescia que estas disciplinas ocupavam muito espaço, não físico, mas sonoro. Os gritos de libertação dos alunos ressoavam pelas salas e perturbavam muitas aulas. Havia uma tensão entre o trabalho sobre as expressões e o restante trabalho formativo e, o que é paradoxal com a dinâmica da animação sócio-cultural, criava muitas vezes a sensação nos outros professores de que o trabalho expressivo era um trabalho estranho, muito ruidoso, fechado nos espaços das salas de aula dedicadas a este tipo de actividades. A criação de personagens abria o véu. É claro que sabendo da hostilidade que havia em relação à disciplina resolvi vir com os meus alunos, trazendo também o meu personagem, o Professor Pardal. E o que eu me divertia. Ía ter com aqueles professores que sabia que acham que o trabalho que fazíamos era uma palhaçada e provocava-os, perguntando porque é que tinham vindo mascarados naquele dia, porque é que não se tinham vestido normalmente, como eu e os meus companheiros de ficção. Muitas barreiras se foram quebrando a partir de então. Muitas, demasiadas vezes, antagonizamo-nos com aquilo com que não conseguimos comunicar.


Nestes dezoito anos muitas coisas se modificaram. Os conteúdos de Criatividade e Espontaneidade separaram-se em dois, para um lado as Técnicas de Animação Sócio Cultural, por outro o trabalho expressivo, com a Criação da Personagem, o Personagem Brinquedo que passou a ter o tempo de uma disciplina para se desenvolver, mudando por isso a sua metodologia. Abandonámos a ideia das cartas e passámos a trabalhar a partir de uma pedra que, enquanto objecto material, fornecia uma possibilidade de uma relação prolongada com o autor da personagem. Criaram-se também momentos de observação da vida quotidiana, foram-se buscar referências da pragmática da Comunicação (E. Goffmann, P. Watzlawick, G. Bateson, E. Hall). Mais tarde ainda introduzimos a criação de silhuetas e isso passou a ser um outro momento importante de animação do espaço exterior, ao colocarmos estes objectos expressivos pelas paredes da escola. Algumas vezes sobreviviam de ano para ano.


O grande salto deste trabalho sobre a construção da personagem no contexto do ensino de enfermagem ocorreu quando tive a oportunidade de trabalhar com a Enf. Patrícia Pereira, com formação em psicologia, que me ajudou, estimulou e incentivou a aproximar os conteúdos do trabalho expressivo dos conteúdos de formação específicos em Saúde e, neste caso concreto, dando relevo à questão da identidade.


A partir daí tornou-se muito claro o que este processo de criação de personagem era: um lugar onde, socorrendo-nos de referências da comunicação, do trabalho expressivo e das ciências sociais (caso da observação participante que regula a proposta de observação no hospital), nós iríamos, em conjunto, criar um corpo reflexivo e indagante sobre o que é que é ser pessoa, sobre o modo como, enquanto pessoas, nos constituímos uns diante dos outros.


O facto de se ter clarificado a proposta, dos seus materiais estarem definidos em função da necessidade de fazer com que cada aluno participe desde logo numa aventura em comum, faz com que o resultado final, mesmo tomando a forma de um objecto expressivo, seja um pouco mais do que isso e dependa do próprio grupo de aventureiros.

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