sábado, 6 de março de 2010

Tomás Adalberto Aquino

Esta é a história de um homem, aparentemente, como tantos outros, com que nos cruzamos diariamente.
Foi um filho muito desejado, e nasceu de parto natural a 13 de Janeiro de 1943, em S. Sebastião da Pedreira, Lisboa, sendo o primeiro filho do casal constituído por Joaquim Manuel da Silva Aquino e Beatriz Genoveva Martins Adalberto. Sendo a mãe caucasiana e o pai negro, os três filhos nasceram mulatos. O último a nascer foi uma menina, Maria Adalberto Aquino, tendo-a precedido o Manuel Adalberto Aquino, irmãos mais novos do homem da nossa história. O seu nome é Tomás Adalberto Aquino.
Tomás teve uma infância muito feliz, tendo aprendido a nadar nas férias que a família passava entre a praia das Maçãs, em Sintra, e Mafra – terra natal da mãe. Jogava ao pião, à malha, ia com os amigos colher e comer fruta aos pomares e quintas. Com o avô Rodolfo aprendeu a tocar acordeão. A mãe ensinou-o desde pequeno algumas habilidades com agulha e tesoura, pois como cada filho nasceu com cerca de seis anos de diferença, D. Beatriz receou ter somente um filho varão, e ultrapassou o seu receio ensinando-lhe tudo o que sabia. O pai mostrou a Tomás o segredo para fazer gomas, quando ele tinha 10 anos.
O Sr. Joaquim trabalhava numa loja de doces na Baixa, e a mãe fazia rendas, crochet, tricot, trapilho e um pouco de tudo o que fizesse jeito. Doméstica, era na realidade muito solicitada pelos seus serviços de costura. Ela própria fez o seu próprio enxoval, bem como o dos seus três filhos. A todos conseguiu ensinar algo da sua arte – Tomás manifestava um jeito particular para o trapilho. Se fosse hoje, independentemente da profissão que escolhesse, D. Beatriz teria o seu próprio blogue, e aos fins-de-semana exporia as suas peças nas arcadas do Terreiro do Paço, onde naturais e turistas estrangeiros comentariam e comprariam as suas peças.
O pai de Tomás concluiu a escola primária, enquanto a mãe não chegou ao fim do terceiro ano. Por sua vez, Tomás esteve na escola até completar o oitavo ano, o que era muito avançado, à época. Não progrediu, com pena dele e dos pais, sobretudo, mas, com cinco bocas para alimentar em casa, os pais tiveram de lhe pedir para ir trabalhar, de modo a contribuir, financeiramente, para a casa e para a família. Era inteligente e tinha boas notas, mas não se esforçava muito. Desde muito precocemente manifestou habilidade para fazer coisas bonitas com as mãos, era um verdadeiro artesão, e a isso se dedicava sempre que possível. Devido às suas longas pernas, ganhou sempre o primeiro lugar em corridas, quer de corta-mato, quer dos cem metros. Um dia perguntaram-lhe se queria correr por Portugal. Aceitou. Contudo, nos treinos de véspera, pelo Inverno, devido à humidade da pista, escorregou e partiu o maléolo externo do pé esquerdo. Hoje caminha sem problemas, mas a carreira olímpica ficou para sempre como uma impossibilidade. Gostava também muito de jogar futebol, e, com o seu 1,80 metros de altura, tinha grande sucesso num desporto novo na época da sua adolescência, o basquetebol, bem como com as meninas. Cortês, escrevia pequenas prosas quando gostava de alguém, mas nesta altura não se chegou a apaixonar.
Aos nove anos começou a trabalhar na loja em que o pai trabalhava, pelo Verão.
Aos doze anos, ao concretizar um pedido da mãe, que precisava de açúcar e farinha para fazer um bolo, teve um acidente de percurso. Tomás foi a uma pequena mercearia nos Olivais, e já vinha de regresso para casa, com o saquinho das compras, quando começa a ouvir passos atrás dele. Era um bando de rapazes mais velhos, entre os quinze e os dezanove anos, que o perseguia. Ainda pensou que se limitassem a passar por ele, mas não. Vinham a rir e a gozar com ele naquilo que seria actualmente considerado como bullying, de forma racista. Queriam dinheiro, que o Tomás não tinha. Procuraram ouro, fios ou assim, que o Tomás também não possuía. Irritados com o “preto”, abriram-lhe uma ferida de cerca de doze centímetros na face esquerda, tendo passado rente ao olho, posto o que desataram a correr, ferindo depois de outra forma, dizendo que agora nem mesmo a própria mãe haveria de gostar dele ou de o achar bonito. Um vizinho encontrou-o, levou-o a casa. Tomás foi depois ao hospital, foi suturado por fora, mas foi a mãe, a família e os amigos que o suturaram por dentro, bem como, e magnificamente, aquela que viria a ser a sua esposa.
Aos treze anos foi trabalhar para uma oficina metalomecânica, em Santa Apolónia, que entretanto encerrou. Durante seis meses esteve desempregado, e finalmente arranjou emprego nos Pastéis de Belém, em Belém, onde conheceu a Celeste, então com vinte anos, com que casou. Aqui havia gente muito heterogénea. Descobriu aqui dois amigos com quem ainda hoje joga xadrez: o Priamo e o Isaltino. Na praça do Príncipe Real, o xadrez é o pretexto de união, ano após ano, às segundas, quartas e sextas à tarde. Às vezes o Tomás leva para todos um dos seus chás, das ervinhas da sua horta, que mantém nas traseiras da sua casa em S. Sebastião.
A mãe ainda é viva, vivendo num lar, mas passando algumas temporadas com cada um dos três filhos. O pai já morreu há muito, num acidente rodoviário, não tendo chegado a vê-lo casar. O casamento de Tomás ocorreu tinha ele 22 anos. A sua noiva era linda, mas não o envergonhava da sua cicatriz nem das suas mãos calejadas do trabalho, antes o amava por inteiro. Com Celeste da Luz, que se viria a chamar Celeste da Luz Aquino, Tomás viveu uma vida verdadeiramente celestial.
Aos 25 anos tiveram o primeiro filho – Jaime Henrique. Foi então que a aparentemente bem cicatrizada cicatriz lhe começou a dar muitas dores, tendo-lhe sido diagnosticado cancro. Foi operado, submetido a tratamentos, e o cancro regrediu. Deram-lhe um ano de vida. Ainda hoje é vivo. Já passaram 32 anos. Nunca mais fez nenhum tratamento. Disseram-lhe que seria impossível ter de novo filhos, pois tinha ficado estéril. Contudo, aos 27 anos, nasceu a Leonor. Foi como uma bênção. É desta filha que nasceram os netos de Tomás.
O Martim quer que o avô ingresse na Universidade Sénior – é o que fazem muitos avós dos colegas dele, e ele acha isso muito “cool”.
Os dias de Tomás são agora preenchidos e semelhantes aos de antes, embora com grande diferenças. Costuma acordar às 8h. Demora muito tempo a levantar-se da cama. É este o período crítico do dia, em que sente a cama quente só pelo seu corpo, a casa imersa na escuridão e no silêncio. Os cabelos e o doce rosto de Celeste já não estão na almofada ao lado da dele. Se ele esticar os braços só encontrará os lençóis.
Celeste morreu há cerca de dois meses, vítima de cancro “na barriga”, concretamente, no útero. Tomás sente-se culpado, pois, mais velho, ainda vive. Ele sobreviveu a uma navalhada perigosa e a um cancro aparentemente fulminante, mas ainda cá está para contar a história, enquanto que a sua querida esposa não. Por isso, e por se encontrar ligeiramente deprimido, demora tanto tempo na cama, de manhã, envolto em pensamentos e memórias.
Costuma finalmente levantar-se por volta das 9h30, tomando o pequeno-almoço às 10h. Meia hora depois, trata das lides domésticas, da loiça, passa algumas peças de roupa a ferro (só o faz com música a tocar), vai comprar algo em particular para o almoço, limpa o pó da casa, trata da sua horta. Quando a casa está minimamente arrumada e asseada, ele entretém-se com o seu trapilho. À semelhança da ovelha Choné, que é muito amiga e útil, Tomás dedica-se actualmente ao trapilho para, com o dinheiro que obtiver com a venda dos objectos que vai criando, poder ajudar um amigo do neto mais velho a comprar uma cadeira de rodas especial, pois que ele é tetraplégico.
Finalmente, por volta das 12h30 prepara o almoço e, meia hora depois, vai almoçar. Costuma dormir a sesta. Por volta das 16h, 16h30, vai jogar xadrez com os amigos e, actualmente, com a menina Laura, para o jardim do Príncipe Real, às segundas, quartas e sextas.
Tomás é um perfeito cavalheiro, sente a falta da Celeste e que trairia a sua memória se se deixasse envolver com a menina Laura, também viúva. No entanto, é por ele próprio que o decide não fazer. Sente-se já muito velho e sem vontade para partilhar a casa, a vida e os dias com outra mulher.
A sua alegria de viver reside maioritariamente nos netos, a quem ensina os segredos dos chás da sua horta e os do trapilho. Nos dias em que não há partida de xadrez, dedica-se ao trapilho de forma mais intensiva. Por vezes, lembrando os tempos em que o pai era vivo, ou porque os netos o visitam, faz gomas.
De boina, camisa e calças de ganga, fica sempre apresentável, e é assim que costuma andar. Simples tal como aparenta, Tomás é um artesão, mais homem de acções que de palavras. É inteligente e preocupa-se com o que o rodeia e com os que o rodeiam. Interage facilmente com as pessoas, sobretudo com quem encontra traços em comum com ele, nomeadamente a nível da viuvez. Dedica-se a diversas actividades, do chá ao trapilho, passando pelo mais intelectual xadrez, pois que, tal como indivíduo normal que é, tanto é simpático e querido para quem merece com pode tornar-se agressivo com alguém que ameace aqueles que ama. Tem em si esta dualidade. Se não fosse inventado, poderia ser qualquer um de nós, com mais ou menos pormenores de vida dignos de telenovela mexicana. Mas há uma coisa que o Tomás não é certamente – devorador de sangue alheio. Tomás é humano, e um belo ser humano, que já viveu e passou por muito.

[Tomás Aquino é uma criação de Maria Manuel]

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