Foi naquela manhã de 26 de Janeiro de 2010 que uma pedra pouco atraente deu origem a tudo o que hoje sou. No entanto, por mais estranho que pareça, já tenho 19 anos! Acredito que já à muito que estava viva e que foi esta pedra que me trouxe para a realidade, no momento certo da minha vida créio eu.
Chamo-me Maria Joana Assunção, unicamente Assunção pois não se conhece o paradeiro do meu pai, nem mesmo a minha mãe alguma vez soube quem ele seria. Isto foi algo que sempre me incomodou terrivelmente, gostava de saber do meu pai, conhecê-lo ou até simplesmente conhecer a sensação de ter um pai. A maioria das minhas colegas vivia com o pai e mãe, mesmo que não vivessem todos juntos, pelo menos conheciam o seu pai. Por isso sempre me senti diferente, longe do mesmo eixo delas e isso trouxe-me alguma solidão, não tinha muitas amigas pois era uma tarefa difícil conseguir relacionar me com alguém.
A minha mãe, a Ana Maria Brito Assunção, tinha 19 anos quando eu nasci, por isso os meus primeiros anos de vida foram passados na casa dos meus avós em Setúbal. Não me recordo desses tempos, pois quando eu ainda tinha 3 anos, a minha mãe conheceu o Joaquim de Almeida Torres e casaram-se. Entretanto, fomos os três viver para a casa dele em Lisboa, mais concretamente em Saldanha.
Nesse mesmo ano, a minha mãe começou a trabalhar como hospedeira, um sonho seu que Joaquim deu asas para ela o seguir. Deste modo, comecei a passar cada vez menos tempo com a minha mãe, porque ela aproveitava qualquer oportunidade de trabalho, passando muito tempo a viajar. Mesmo quando ela estava em casa, passava mais tempo com o Joaquim em passeios que chegavam a durar um fim de semana, enquanto eu ficava com a ama. A minha mãe trazia-me sempre muitos livros quando voltava a casa. Contudo, sempre senti muito a falta dela, do seu carinho e afecto, inocentemente não a culpava claro, até porque era a única coisa que ali me restava de familiar.
Quanto ao Joaquim, a verdade é que ele até poderia ter sido o meu grande apoio durante as ausências prolongadas da minha mãe, visto que era com ele com quem eu ficava. No entanto, não foi bem assim e a partir do meus 7 anos, o Joaquim em vez de uma ajudar, intensificou ainda mais o meu mau estar. Quando a minha mãe viajava, havia dias em que ele chegava a casa chateado, batia-me e dizia que eu não valia nada. Esta altura foi difícil, porque eu tinha medo que se contasse à minha mãe, o Joaquim ainda me fizesse mais mal quando ela voltasse a partir em trabalho.
A partir dos meus 15 anos, esta situação começou a ser menos frequente, pois o Joaquim conheceu outra mulher, com quem passava muito tempo enquanto a minha mãe viajava. Nada disto me incomodava, pois era um alivio para mim o facto do Joaquim manter-se ocupado com outras coisas em vez de bater-me. Contudo, eu continuava a sentir-me sozinha, chorava muito, sentia a falta do carinho e atenção da minha mãe.
Na escola tinha um amigo, o João, com quem falavamos dos Livros que liamos, tinhamos conversas muito interessantes sobre o espaço, a origem do Homem ou o porquê das coisas. Enquanto que os outros colegas limitavam-se a leituras obrigatórias como “Os Maias”, eu lia por exemplo Friedrich Nietzche. Sempre fui bastante solitária, reservada, tímida e com interesses mais culturais do que própriamente namorados, festas e amigas.
No entanto, nesta altura da adolescência a dor emocional também era muito desconfortante, o que me levou a auto-mutilar me. Esta foi a forma que encontrei para aliviar toda a dor que sentia dentro de mim, por isso fazia cortes na coxa. Quando não me cortava, era como se sentisse uma chama enorme a queimar-me por dentro aos poucos e poucos, a dor física era o alívio para este enorme mau estar. “Quando me não dói o corpo, me dói a alma”, citou Miguel Torga e igualmente me sentia.
Relembro toda a minha infância e adolescência como uma época bastante negra da minha vida, que apesar de tudo, as suas marcas ainda permanecem. Tal e qual, como a misteriosa pedra que me acordou para a vida. Sinto-me como ela, que apesar de nova, fui envelhecida pela vida, com registos de marcas físicas e psicológicas/afectivas.
Entretanto, de à um ano para cá a minha vida sofreu uma grande mudança. A minha mãe faleceu num acidente de avião, que foi o maior choque da minha vida, pois sempre tive a esperança de vir a passar mais tempo com ela. Senti que aproveitamos muito pouco da relação mãe-filha que tinhamos, pois apesar de tudo sempre a amei, sempre a admirei por seguir o seu sonho e permanecer uma lutadora. Ela era a minha mãe!
Após esta situação fui viver com os meus avós para Setúbal, eles foram muito atenciosos e deram-me um grande apoio. No entanto, desisti da escola e acabei por não entrar na faculdade. Passava os dias trancada no quarto, até ao dia em que numa tentativa de alívio da dor emocional que sentia, o corte no pulso foi mais profundo, perdi muito sangue e desmaiei. A minha sorte foi a minha avó me encontrar caida na casa de banho e levou-me imediatamente para o hospital. Sobrevivi! E mais do que sobreviver, renasci!
Desde que tudo isso aconteceu a minha vida mudou, comecei a frequentar terapias de grupo, que suscitaram em mim uma enorme necessidade de criar objectivos de vida, de procurar pequenos prazeres que a vida tem, lutar. Lutar como a minha mãe sempre lutou!
Descubri o conforto da praia, da tranquilidade e serenidade que ela me transmitia. Hoje sei que quando estou triste, a melhor forma de aliviar a minha dor é ir passear pela praia. Sentir a doce brisa do mar, ouvir as ondas do mar a arrebentar e sentir a suave areia da praia a acariciar os meus pés. Desde aquele dia que nunca mais me cortei. Ainda me sinto triste, mas acho que toda a minha vida é feita desta melancolia anónima.
Com esta firmeza que construi para mim, encontrei os meus fortes pontos de equilíbrio e com isso estabeleci algumas metas. Deste modo, consegui entrar na Faculdade de Ciências e Tecnologia, onde estou a tirar o curso de Biologia Molecular e Celular, com o objectivo de futuramente tirar mestrado em Genética e trabalhar no meu próprio laboratório de investigação. Também tirei o curso de Nadadora Salvadora, não fosse a minha pedra-mãe ter a tonalidade de tijolo que me lembra a minha pele queimada da exposição solar ou a cor do meu uniforme.
Contínuo na casa dos meus avós, porém os amigos ainda são poucos, tenho duas colegas da faculdade com quem falo, mas a relação acaba por ser muito superficial. Ainda penso muito no João, acho que foi o único amigo que na verdade tive. Vemo-nos de vez enquando, mas desde de que saí de Lisboa, cada vez é menos frequente. Por isso admiro o macaco, que é o meu animal favorito pela sua incrivel capacidade de viver em sociedade, facilmente sociável, apesar de também admirar a sua inteligência.
A minha atitude nunca foi um grande apoio no mundo social, reconheço que até sou bastante inteligente e que o meu cabelo ruivo, as sardas nas bochechas e os olhos verdes até me dão uma certa graça. Contudo, permaneço reservada, tímida e pouco comunicativa, cada vez mais observadora. Faço um tique com a cabeça, que nos olhos dos outros torna-me um ser estranho.
Tenho todos os dias comigo um saquinho de amêndoas, pois gosto de as saborear quando estou mais nervosa e quando há muitas pessoas à minha volta. Descontraem-me, levam-me até a um dia feliz ao lado da minha mãe. Era dia de Páscoa e fomos passar o dia à casa dos meus avós, sem o Joaquim que por motivos que desconheço teve de ficar a trabalhar, talvez esteve com a outra. A minha mãe deu-me um saquinho de amêndoas que tinha trazido da Suiça e um abraço terno e carinhoso. Nunca me esqueci desse bom momento, talvez o único momento onde senti realmente o Amor que a minha mãe tinha por mim.
Ao nascer com a minha pedra, uma linda música acompanhou-me desde então e com essa música termino esta pequena história da minha vida. “Sozinho”, de Caetano Veloso, simplesmente porque “estou me sentindo muito sozinho” e “é que um carinho ás vezes cai bem”.
[Maria Joana Assunção foi criada por Berta Couto]
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário